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DISSERTACAO DE MESTRADO. Investigações sobre a criação de um Parque Urbano. Luiza Silva

O Pocim

O Pocim - regionalização da palavra pocinho, forma como é reconhecido pela população local - é uma extensa área verde de aproximadamente 23.000 metros quadrados que faz parte do conjunto de cinco áreas destinadas à recuperação ambiental de fundos de vales, resultantes do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, empreendido no período de 2005 a 2011 pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH). A intervenção estrutural de alto impacto do Vila Viva no Aglomerado da Serra executou a remoção de moradores, a demolição de construções, a interceptação do esgoto despejado in natura e o isolamento das áreas de fundo de vale e nascentes com o objetivo de recuperar as margens e a qualidade da água dos córregos, além de reduzir impactos da urbanização (como enchentes) a jusante. Entretanto, essas áreas que eram demarcadas como parques públicos de uso cotidiano da comunidade no planejamento do Vila Viva foram mantidas isoladas por gradeamento e proibição de acesso, e não foi instalado nenhum equipamento público, tornando-as em curto prazo, “terras de ninguém”. 

As intervenções do programa apresentaram grande impacto socioespacial (remoções, fragmentações, transformação da paisagem etc.), pontuais no tempo. As estratégias ambientais se mostraram eficazes na recuperação imediata da qualidade das águas. Entretanto, a ausência de um programa focado na continuidade de ações, no envolvimento e compreensão da população, na dinâmica de constantes transformações espaciais da favela e no caráter sistêmico dos aspectos ambientais, fez com que, em poucos anos, as áreas voltassem a enfrentar dramáticos processos de degradação e insalubridade. Essas áreas isoladas do entorno por grades e interceptores de esgoto não resistiram à pressão da alta densidade populacional, das rápidas transformações das construções, da disputa pela terra e emergência pela moradia. As dinâmicas de ocupação e uso da terra no urbano e, principalmente, nas favelas não condizem com a existência de grandes porções de terra esvaziadas de uso, pois isso as torna imediatamente suscetíveis a processos de degradação e reocupação. 

O grupo Pocim Vivo

O Pocim Vivo foi uma experimentação coletiva de autogestão de um dos cinco “parques” remanescentes do Vila Viva no Aglomerado da Serra, que envolveu moradores da região, arquitetos e estudantes de arquitetura da PUC e da UFMG. Esse grupo se constituiu a partir de uma experiência realizada pela parceria entra a Associação Arquitetas Sem Fronteiras (ASF Brasil) e o Centro de apoio Operacional das Promotorias de Direitos Humanos do Ministério Público de Minas Gerais (CAODH-MPMG), que juntas elaboraram o Programa de Apoio à Ação Comunitária e Autogestionária (PAACA). O programa buscava traçar estratégias coletivas de resolução de conflitos territoriais alternativas às Ações Civis Públicas (ACP), que nem sempre se mostravam eficazes e satisfatórios às populações e geralmente são processos demorados. O PAACA realizou quatro encontros com moradores interessados das vilas que conformam o Aglomerado da Serra, independentemente de serem lideranças comunitárias ou cidadãos comuns. 

Esses encontros foram marcados pela troca entre técnicos e moradores, levantando e mapeando os problemas do território e discutindo as possibilidades de resolução. Nesse contexto, formou-se o “Grupo de Preservação do Pocinho” (que posteriormente seria renomeado pelos próprios participantes como Pocim Vivo) como proposta de enfrentar coletivamente o problema territorial de abandono das áreas de preservação na Serra. Portanto, apesar de focado em apenas uma das cinco áreas, o grupo intencionava servir de exemplo para que a comunidade pudesse vislumbrar possibilidades de reconstrução de relações, territorializações e apropriações com todos os cincos parque em situação de desuso e abandono na Serra, e além: pretendia servir como exemplo a iniciativas futuras em todo o município. 

A recuperação ambiental era o horizonte comum a ambas as iniciativas a que foi submetido o Pocim: a do Vila Viva, por meios institucionais, e a do grupo Pocim Vivo, por meio de ações da coletividade. Entretanto, a proximidade de objetivos se contrapõe à distância entre as estratégias adotadas por cada um deles: enquanto o Vila viva supôs que o afastamento da população poderia garantir a recuperação e a preservação das áreas verdes, o grupo Pocim Vivo defende que elas só serão possíveis se conjugadas com a reconciliação e reaproximação dos moradores com essas áreas – e com os elementos “naturais” que as compõem. 

É preciso compreender que essa proximidade do discurso de ambas as iniciativas pode ser considerada um dificultador no processo de mobilização da comunidade pelo grupo Pocim Vivo. Afinal, com o Vila Viva, o discurso ambiental acabou gerando práticas de grande impacto – em sua maior parte, negativo – à vida cotidiana daquela população. Numa cidade marcada por tantas desigualdades, o acesso a estruturas que garantam qualidade ambiental, lazer e relações saudáveis e equilibradas entre população e natureza geralmente é negado a populações de baixa renda, e a assentamentos inadequados do ponto de vista do mercado de terras. Como construir, então, uma relação de confiança para o envolvimento da comunidade, a partir do discurso da recuperação ambiental?  

As águas das nascentes do Córrego Bolina que, há décadas atrás, formavam um poço, serviam à comunidade como alternativa de abastecimento. Ou seja, aquelas águas eram fator fundamental para a sobrevivência da comunidade assentada. Ao mesmo tempo, a inexistência de uma rede de distribuição de água canalizada fazia desse poço (“pocim”) um lugar de encontros, onde lavadeiras criavam laços, crianças desfrutavam das águas, baldes eram abastecidos, histórias individuais e coletivas eram construídas. O “objeto” poço, essencial à sobrevivência da comunidade, é dotado de valor simbólico e faz parte de uma rede de relações que constrói aquela realidade e territorialização. Esse poço, ou Pocim, gradualmente secou, devido à ocupação desordenada da cabeceira e consequente retirada da vegetação e impermeabilização do terreno. Entretanto, permanecem as linhas de drenagem que, em períodos chuvosos apresentam intenso fluxo de águas pluviais.  Assim, as águas que correm nos talvegues, antes fonte de sobrevivência, passam a carregar e distribuir dejetos pelo território, trazendo insalubridade, riscos de doenças, proliferação de pragas, entre outros. As mesmas águas, correndo em cursos transformados por seu próprio movimento e pela ação humana, também geram riscos pontuais de deslizamento de terra, riscos de inundações e soterramento às ocupações das margens. A alta declividade do terreno e a presença das linhas de drenagem, levaram os técnicos que realizaram o PGE do Aglomerado da Serra a demarcar o Pocim – antes densamente ocupado – como área de predisposição ao risco geológico e, portanto, “não edificante”. 

As relações históricas daquela comunidade com as águas das nascentes do Córrego Bolina se expressam na identidade do lugar, onde a vizinhança autoproduzida conta, além da área do Pocim, com ruas e becos nomeados como forma de registro dessas relações: Rua da Água, Rua da Nascente, Beco do Chafariz etc. Como defende Silva (2013), essas expressões poderiam ser ferramentas fundamentais à reversão de quadros de degradação a partir da valorização dos sujeitos, dos valores simbólicos, e das ações locais. 

Na tentativa de construir novas narrativas naquele lugar, enfrentando o histórico de rupturas que ele sofreu, o grupo Pocim Vivo atuou por dois anos em parceria com estudantes de arquitetura da PUC e da UFMG, realizando experimentações espaciais através de oficinas e mutirões, produzindo acessos, áreas de convivência, espaços para brincadeiras das crianças, áreas de cultivo de hortaliças etc. 

Além disso, o grupo debatia e investigava propostas e possibilidades de geração de renda naquele lugar através da autogestão, onde os gestores pudessem explorar os potenciais produtivos da terra de forma coerente e responsável com o caráter de recuperação ambiental da área. Sendo assim, o grupo vislumbrava um projeto em que os próprios moradores fossem protagonistas na criação e manutenção do parque produtivo e comunitário. 

O grupo sofreu um gradual processo de desmobilização durante o ano de 2018, devido à falta de suporte institucional, falta de recursos, conflitos de poderes locais, transitoriedade de participantes, assimetrias sociais entre os participantes, trabalho majoritariamente voluntário (e de curto fôlego) e, principalmente, dificuldades de se consolidar processos autogestionários de fato, num contexto de produção da cidade tão marcado por relações heterônomas. Entretanto, é importante demarcar os pequenos ganhos coletivos que se deram a partir dessa experiência.       

 

Aspectos de aprendizado coletivo

Diante dessa experiência do grupo Pocim Vivo, é importante nos questionarmos: se a  privatização de áreas verdes públicas é vista no imaginário coletivo, principalmente dos gestores públicos, como solução possível aos entraves da administração pública,  por que se rejeita a ideia de coletivização da gestão dessas áreas? 

São necessários a busca e o esclarecimento das vantagens materiais e políticas de processos inclusivos e emancipatórios para a efetividade da atuação do Estado a longo prazo, e para a continuidade dos benefícios, quando houver, trazidos por essa atuação. Num contexto metropolitano, a continuidade da tutela da “mão” do Estado é, muitas vezes, impossibilitada por estruturas institucionais insuficientes frente à escala e à complexidade das problemáticas urbanas.  

A proposta visava a experimentação de ações coletivas para a reparação os danos coletivos sociais e ambientais gerados pelo poder público com a permanência das áreas sem usos para a comunidade. Sendo assim, a sustentabilidade econômica do projeto dependeria da disponibilização de recursos públicos como reparação de danos coletivos. 

Há um enorme  desafio em se construir e reconstruir métodos participativos que não sejam meros instrumentos de apaziguamento de conflitos ou que forcem consensos, e sim que sejam capazes de angariar os conflitos e a complexidade das redes de relações que formam nossa realidade social, de forma a enriquecer as tomadas de decisão, trazendo-as cada vez mais próximas dos cidadãos comuns e de suas vidas cotidianas. 

A experiência do Pocim Vivo foi emancipatória no sentido de elucidar alguns potenciais latentes, e o desejo de transformação daquela realidade social, que está presente no imaginário daquela comunidade. Além de ter sido, também, uma oportunidade de troca de saberes e construção de novos imaginários acerca daquele lugar. A experiência foi um meio, também, de se reiterar a indispensabilidade, hoje, do suporte institucional para que esses potenciais latentes se transformem em práticas transformadoras. Fomentar verdadeiramente a participação – no sentido de fazer parte – significa oferecer ferramentas e subsídios para que se crie, de forma endógena, as próprias normas, os próprios discursos e narrativas e as próprias práticas (SILVA, 2018). 

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