TESE DE DOUTORADO. A violência que nos constitui. Juliana Marques
A idéia de um projeto de um espaço construído ou objeto arquitetônico como educador aparece, modernamente, em especial entre o final do século XVIII e início do século XIX, paripasso às revoluções burguesas. É uma noção profundamente iluminista: na medida da mudança da noção de belo como intrínseca ao objeto, idéia essa tão debatida ao longo dos séculos XVII e XVIII nas tentativas científicas de se reproduzir esse belo através do estudo atendo de suas proporções (cuja inversão se dá marcadamente na teoria estética na terceira crítica kantiana, a crítica do juízo, ou do gosto, conclui que a faculdade de julgar é do sujeito) -e que parece ser derrubada juntamente com as barrières (postos de arrecadação de imposto), estopim da Revolução Francesa) - surge em seu lugar uma forma nova de se relacionar com as imagens. Essa novo regime, desenvolvido à partir do século XIX, vem na arquitetura e urbanismo acompanhando de duas questões que marcarão a relação com a idéia de projeto profundamente: Primeiramente nasce a questão da preservação, a idéia de que existem objetos artísticos e arquitetônicos que merecem ser preservados. Essa questão surge justamente com o fervor revolucionário e se imbricará profundamente com uma nova forma da própria produção historiográfica positivista do século XIX. Em segundo lugar se aprofunda a separação entre uma maneira Beaux Arts de se produzir e uma maneira Politecnique.(a academia real de arquitetura é fechada pela revolução francesa, e posteriormente o ensino de arquitetura se dividirá, então, nessas duas escolas). Onde se encontra, portanto, o surgimento de uma noção de possibilidade pedagógica da arquitetura nem meio a essas questões? (postas até aqui: um regime de imagens que se dá na noção de subjetividade da apreensão artística, uma nova forma historiográfica e uma nova forma de ensino da arquitetura) Essa idéia surge justamente de uma nova compreensão da função dos objetos artísticos, num regime que passa a incluir a arquitetura como produção artística, separada de sua função estritamente técnica. Se até o século XVIII a função da arquitetura, bem como a função de todo objeto produzido pelo homem, era uma função em si, o século XIX se vê diante de outra face da relação com esses objetos: uma face que passa pela percepção subjetiva, e que, portanto, tem o potencial de moldar o indivíduo. A função de moldar um sujeito é, portanto, uma função educadora. Não é fortuito, nesse contexto, portanto, a tentativa de Nicolas Ledoux, ele próprio o arquiteto das barriéres tenta se redimir se colocando como homem do seu tempo, e não um homem do tempo que acabou, ao escrever sobre como sua forma de projetar é tanto influenciada por Rousseau (e a noção de tábula rasa é fundamental aí também para essa proposição educadora) como capaz de propor edifícios que irão educar o homem para um novo mundo, um mundo do esclarecimento.
Apesar do intento de Ledoux não ter sido realizado, e o arquiteto não ter voltado à construir no mundo pós revolucionário, sua lógica é bastante esclarecedora do mundo em meio à uma ruptura radical. Mesmo que a sua proposta de arquitetura parlante seja vista por nós contemporâneos como ingênua, a compreensão de que uma forma de relação com os objetos arquitetônicos e do espaço construído é potencialmente transformadora- para bem ou para o mal- dos indivíduos que nela co-existem, se tornou pano de fundo para toda a produção do espaço moderna e contemporânea. Tanto uma lógica da reprodução de novas tipologias para a metrópole republicana em desenvolvimento, no século XIX, como a criação de uma nova arquitetura para um novo mundo da máquina, do início do século XX, quanto na crítica da funcionalidade exacerbada do positivismo e incorporação de processos que ativem outras sensibilidades para além do racional, a partir de meados do século XX, em todas a relação de formação de subjetividades e processos de devir estão presentes. É nesse sentido que me proponho, portanto, a analisar quais formas de relação com a subjetividade dos habitantes está presente na cidade latino americana no final do século XIX, em se tratando de um momento, justamente, de criação de identidades nacionais. Num contexto de produção de discursos sobre pureza de raça, mestiçagem, relação com uma Europa que não é mais metrópole (stricto sensu), como foi proposta a produção do espaço urbano adequado à esses discursos, e, especialmente, o que esses discursos dizem do processo pós colonial latinoamericano? Afinal, a cidade latina se propõe a manter um regime de colonialidade (ou colonização num mundo pós independência, na definição de Aníbal Quijano) e se sim, como esse regime se reproduz na produção do espaço?