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A NOVA FACE DA REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL
Publicado em: julho 14, 2018
Por Alessandro Sasso, Anderson Guerreiro e Fernanda Bierhals – Beta Redação (*)
A assentada Cleusa Oliveira Reichenbach, 60, circula com orgulho pelas hortas orgânicas e pelas lavouras de arroz do Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em um sábado de maio, ela nos recebeu para mostrar o funcionamento do assentamento onde 47 famílias têm no cultivo de hortaliças e na produção de arroz e leite a base das suas atividades. Os últimos dados do Sigra, o Sistema Integrado de Gestão Rural, de 2016, mostram que o Integração Gaúcha produz cerca de cinco mil toneladas de arroz orgânico por ano, 113 toneladas de produtos nas hortas e 250 mil litros de leite.
Essas famílias fazem parte de um contexto muito maior. Os números mais atualizados do INCRA, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, mostram que há 12,4 mil famílias assentadas no Rio Grande do Sul. O primeiro assentamento criado no Estado, em 1975, foi o Sarandi — Gleba 2, em Pontão, na Região Norte. De lá para cá, a desapropriação ou a compra de áreas ociosas pelo órgão foi a cara mais visível da Reforma Agrária no Brasil. No período de 1995 a 2015, foram assentadas em média de 58 mil famílias por ano no país. Mas nos últimos dois anos essa política mudou. Em 2017, os números são de zero assentamentos criados e zero famílias assentadas não apenas no Rio Grande do Sul, mas no Brasil.
A prioridade do INCRA passou a ser a da concessão de títulos definitivos de terra aos assentados, os chamados Títulos de Domínio (TD), mecanismo que transforma um assentado em pequeno agricultor, dono do seu lote de terra e, por consequência, desvinculado das políticas do Plano Nacional de Reforma Agrária, o PNRA. Entre 2003 e 2016, 25.735 títulos definitivos foram concedidos a assentados no país inteiro. Somente em 2017, esse número foi de 26.535.
Para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, trata-se de uma “contra-reforma agrária”. O INCRA se defende e afirma que está apenas aplicando uma política prevista legalmente, a da concessão dos Títulos de Domínio. Em meio a este imbróglio estão os assentados como a Cleusa, que querem continuar vinculados ao PNRA através do seu Contrato de Concessão de Uso (CCU) e ao MST. Outros tantos, como Agostinho Clivatti, do Assentamento Novo Sarandi, em Sarandi, que há pouco mais de dois meses ingressou com pedido no INCRA para ser titulado, e como Vilson Reolon, agricultor de Pontão, antigo assentado da Fazenda Annoni, que deixou de ser um assentado em 2001 e, desde então, é dono da sua própria terra.
Os diferentes títulos e suas implicações
A entrada de uma família nas políticas de reforma agrária sempre ocorre através do Contrato de Concessão de Uso, o CCU. Este documento transfere ao assentado, de maneira provisória, um lote de terras que deverá ser explorado. Além disso, permite à família acessar créditos e políticas públicas do Governo Federal disponíveis para o setor. Com o CCU, o assentado não é dono da terra. Apenas tem o direito de cultivar determinado produto no lote, de maneira individual ou coletiva. Na visão do MST, esta é a verdadeira forma de se concretizar a reforma agrária no país.
Além do CCU, outros dois documentos podem ser concedidos aos assentados: o CDRU (Concessão de Direito Real de Uso) e o Título de Domínio (TD). Ambos são definitivos e, para solicitá-los, o assentado precisa estar há pelo menos dez anos no assentamento. O CDRU serve para transferir, de maneira gratuita, a posse do lote ao agricultor, mas ainda o mantém vinculado ao INCRA e às políticas da reforma agrária, diferentemente do TD, esta modalidade que, há dois anos, passou a ser uma das maiores diretrizes a nível nacional na área.
Adalberto “Pardal” Martins, 51, é engenheiro agrônomo e doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É também um dos dirigentes gaúchos do MST e atua no movimento há quase 30 anos. Na tarde de 9 de maio, durante a 5ª Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária, na UFRGS, ele disparou fortes críticas ao INCRA e ao Governo Federal a quem acusa de criar um clima de instabilidade para forçar os assentamentos a quererem o título de posse definitiva dos seus lotes. “A titulação hoje é uma contra-reforma agrária. Ela não interessa ao movimento de reforma agrária. O INCRA, quando vai nos assentamentos, não coloca o título de Concessão Real de Uso (CDRU) como possibilidade. Ele coloca só o Título de Domínio”. A mesa de discussões daquela tarde promovia exatamente um debate sobre a “privatização dos assentamentos” e a priorização pela concessão de TDs em detrimento dos CCUs ou mesmo dos CDRUs.
No Rio Grande do Sul, o INCRA, desde janeiro de 2017, é comandado pelo advogado André Murad Bessow, 37, filiado ao Progressistas. Segundo ele, pelo fato de o RS ser um estado muito produtivo, há uma dificuldade em se conseguir novas áreas para criar assentamentos. Isso explicaria, em parte, a paralisação na criação de assentamentos nos últimos dois anos. Por outro lado, há uma priorização da concessão dos Títulos de Domínio (TD) como uma das políticas preferenciais do órgão, o que também colabora para a estagnação na aquisição de novas áreas a serem assentadas.
Os descontos para que os assentados adquiram os lotes chegam a 90% para pagamentos à vista, o que, segundo o MST, é um convite para que o TD seja solicitado. “Nessa nova gestão nacional do INCRA, entenderam que seria uma política que deveria ser também aplicada e estamos trabalhando na titulação já que nesse outro ponto, de criação de assentamos, que não deixamos de lado, não deixamos de fazer… mas a gente também tem outras demandas e a titulação definitiva é uma”, afirma Bessow. Quando um assentado recebe este título, ele passa a ser dono da terra e se torna um pequeno agricultor. A partir daí, deixa de ser beneficiário das políticas de reforma agrária e, por consequência, se desvincula dos movimentos sociais de luta pela terra.
Relatório do TCU colocou assentamentos em xeque
André Bessow também afirma que as razões para que nenhuma nova família tenha sido assentada no ano passado no país caem, em parte, sobre o Tribunal de Contas da União (TCU). Em abril de 2016, a corte publicou um acórdão afirmando haver indícios de irregularidades nos cadastros de 578.547 assentados da Reforma Agrária no país ante os 1,6 milhão de beneficiários, ou seja, 36% do todo. Em setembro de 2017, provocado pela Procuradoria Geral da República, o Supremo Tribunal Federal, por despacho do ministro Alexandre de Moraes, autorizou a retomada da criação de novos assentamentos e da destinação de lotes a novas famílias, o principal ponto do acórdão do TCU de um ano e meio antes.
Um mês antes da decisão de Moraes, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul havia concedido liminar no mesmo sentido que valia para todo o país. A decisão foi da juíza federal Clarides Rahmeier e atendeu pedido do Ministério Público Federal que apontou uma série de irregularidades no acórdão do TCU. O procurador Fabiano de Lemos, do MPF, sustenta que o tribunal de contas apenas realizou o cruzamento de dados, sem trabalho de campo e contato com os supostos assentados irregulares.
O relatório do TCU soou como uma denúncia. Os dados apontaram que 363 mil assentados residiriam em um município diferente do local do assentamento, 144 mil assentados seriam servidores públicos, 38 mil estariam já mortos, 19 mil apresentariam sinais de riqueza (como carros de luxo declarados em seus nomes). E cerca de 10 mil seriam portadores de deficiência física ou mental. No Rio Grande do Sul foram apontadas irregularidades para cerca de 4,5 mil famílias. Desde então, equipes da superintendência do INCRA no estado realizam o trabalho de verificação das informações. Até junho, metade dos indícios já haviam sido apurados — cerca de 2,5 mil. Foram encontradas irregularidades em 55 famílias assentadas, geralmente por terem saído do lote ou falecimento. Isso corresponde a 1,22% do total de indícios apontados pelo TCU no Estado.
Para o MST, a decisão do Tribunal de Contas da União serviu, também, para gerar insegurança nas famílias assentadas criando, segundo o movimento, uma sensação de fragilidade dos Contratos de Concessão de Uso (CCU), modalidade que transfere, de maneira provisória, o lote a um assentado e o vincula às políticas do INCRA. O caminho seria, então, a busca pelo TD, cujo processo de concessão é feito pelo INCRA. Este processo inclui visitas a municípios e assentamentos para convencer assentados a optarem pela compra e posse definitivas da área.
“Após o impeachment se cria um clima de instabilidade nos assentados. Surge uma visão de instabilidade em relação à concessão de uso, como se este fosse documento frágil que deixaria as famílias à mercê de perder sua terra. Mas isso não é verdade. No Brasil, são três milhões de hectares de terra de assentamentos. Portanto, é realizado um trabalho através de agentes locais (vereadores, deputados, prefeitos e funcionários do INCRA) para se criar a ideia de que o TD vai garantir sua estabilidade”, afirma Álvaro Delatorre, 55, dirigente estadual do MST.
Segundo o INCRA, as titulações são também uma política válida de reforma agrária e, portanto, precisam ser executadas. “A titulação não foi criada nesta gestão. Existe em lei desde sempre, mas foi uma política que, até então, não vinha sendo aplicada. Somos um órgão executor de política pública. Não debatemos ou geramos legislação. Se legalmente um assentamento procura e quer o TD, nós temos a obrigação de conceder”, afirma Clodoir da Silva, chefe da Divisão de Desenvolvimento no INCRA no RS. A lei 8.629 de 1993 é a que regula o processo de titulação no país. Ela teve modificações em 2017 através da lei 13.645 que, extensamente, trata de temas correlatos à reforma agrária, incluindo a regularização fundiária de áreas da Amazônia Legal.
Apesar da diretriz a nível nacional, o INCRA do Rio Grande do Sul não tem realizado titulações como espera seu comando central, em Brasília. Enquanto Maranhão, Mato Grosso e o Sul do Pará concederam 1.394 Títulos de Domínio no ano passado, apenas 39 assentados gaúchos conseguiram concluir o processo de titulação e ter a posse do seu lote de maneira definitiva. O INCRA nacional estipula metas de TDs a serem concedidos por suas superintendências regionais e o ranking compõe o Titulômetro, um sistema interno do órgão que configura uma espécie de competição.
Os argumentos de quem buscou a titulação
Nem todos os assentados da reforma agrária podem requerer um Título de Domínio. É preciso estar há pelo menos dez anos no seu lote e ter dado a ele, em todo o período, a correta destinação, não ter irregularidades apontadas pelas equipes de fiscalização do INCRA e ter a área do assentamento georreferenciada. Há, no entanto, assentados que podem e pedem o TD. No Rio Grande do Sul, o período de 2006 a 2016 foi marcado pela ausência total da concessão desses títulos. Para o superintendente regional do INCRA, André Bessow, as razões seriam apenas administrativas.
Vilson Reolon, 61, é titular de um lote de 15,4 hectares de terra em Pontão. Nos anos 80, a área pertencia à Fazenda Annoni, um dos berços históricos das lutas do MST. Em 2001, Vilson obteve o Título de Domínio da sua área e deixou de ser um assentado da reforma agrária. O interesse pela titulação veio de um motivo simples: ele queria uma propriedade no seu nome. “A gente não vive para sempre, né?”, argumenta o agricultor. Pai de duas filhas, ele ficou interessado em adquirir um lote para garantir uma propriedade em nome da família. Para ele, o TD foi oferecido como melhor alternativa.
Agostinho Clivatti, assentado há 31 anos em Sarandi, solicitou seu TD a partir de uma reunião com assentados em Pontão. O encontro foi realizado em março pelo INCRA em conjunto com as prefeituras Pontão e Sarandi. Na ocasião foram esclarecidas questões relacionadas à titulação para os assentados presentes. Com a posse de sua terra, Agostinho pretende ampliar a produção. “Quero buscar financiamentos para tratamento de solo, já que o INCRA não oferece esse tipo de crédito. Atualmente produzo muito pouco por causa desse impasse”, afirma. A compra do lote, que possui 20 hectares, foi solicitada, mas o agricultor ainda aguarda informações do órgão sobre o valor a ser pago.
O INCRA tem feito diversas reuniões em municípios onde há assentamentos desde o ano passado. A titulação sempre está na pauta. É o que mostram os posts públicos feitos no perfil do superintendente do órgão no RS, André Bessow, no Facebook, além de matérias publicadas no site do instituto e outras fontes, como sites e redes sociais de autoridades municipais. As lideranças desses municípios fazem peregrinação até a Superintendência do INCRA na Capital Gaúcha para discutir a concessão dos títulos e outros temas relacionados à agricultura.
Segundo Bessow, isso ocorre porque muitos assentados não conseguem se deslocar do interior a Porto Alegre para fazer as solicitações. O superintendente também defende que as reuniões realizadas nos assentamentos são um direito das famílias de terem informação a respeito do Título de Domínio. “É preciso fazer um trabalho de informação e conscientização. É neste sentido que nós vamos fazer as conversas nos assentamentos, mas não para forçar até porque o TD não é obrigatório. Mesmo que o assentamento tenha todas as condições e uma família não queira ser titulada, ela pode permanecer na modalidade de CCU. Nós temos que conceder o direito para aquelas famílias que querem receber o título. Esse é o nosso trabalho”, defende Bessow.
O MST discorda da política de priorização de venda dos lotes e está discutindo com a base as implicações da adesão ao Título de Domínio para que, nas palavras de Pardal Martins, eles não sejam enganados.
“Futuramente a gente pode ter novos governos que sejam mais próximos dos interesses populares e termos novas conquistas, como novos programas de moradia, novos recursos para a produção. E aquelas famílias que optarem pelo TD não vão poder mais ser beneficiadas”, afirma. O movimento entende que por trás desta motivação está a especulação imobiliária, especialmente em áreas próximas a grandes rodovias, como na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Pega Nova Santa Rita, Eldorado, são regiões urbanizadas onde um lote de 10 hectares vale muito dinheiro. Então imagine um assentamento encostado na BR-386, a Rodovia da Produção. Você não acha que existe uma pressão? Existe”, afirmou Pardal, da direção estadual do MST, também na Jornada em Defesa da Reforma Agrária, no início de maio.
Política do INCRA enfraquece a luta pela terra, diz MST
Para o Movimento dos Sem Terra, os Contratos de Concessão de Uso são a verdadeira forma legal de viabilizar a reforma agrária. Esta também é a visão da professora Rosa de Medeiros, doutora em Geografia pela Université de Poitiers, na França, e pesquisadora das questões agrárias há cerca de 30 anos. Ela coordena o NEAG, Núcleo de Estudos Agrários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e se diz cética quanto à concessão dos Títulos de Domínio como maior política desenvolvida pelo INCRA. “Eu vejo que os títulos (TDs) podem vir na contramão da reforma agrária. Considero que os Contratos de Concessão de Uso da terra são o caminho porque irão permitir esse trabalho coletivo, conjunto, a criação de associações e aí está o exemplo da produção do arroz orgânico no nosso Estado. Se começa a dividir, começa a dar Título de Domínio, como é que fica? Como essas pessoas vão se sentir? Não vejo isso como positivo para a continuidade dos assentamentos. É uma coisa que está sendo instalada para, pouco a pouco, terminar com essa realidade positiva, que nos dá um alento para que seja possível a reforma agrária neste país”, afirma a pesquisadora.
Além de enfraquecer o PNRA, conforme entende o MST, a expansão dos Títulos de Domínio pode também enfraquecê-los enquanto movimento. No momento em que um assentado passa a ter a posse definitiva do seu lote através do TD, haveria uma certa ruptura com o MST. Além disso, o recente titulado deixa de estar vinculado ao INCRA oficialmente. Mesmo assim, o órgão afirma que continua prestando assistência aos titulados através de parcerias com prefeituras que fazem, por exemplo, a manutenção das estradas. Esta assistência torna-se, portanto, indireta.
A política de expansão dos Títulos de Domínio poderia acarretar, também segundo o MST, na reconcentração de terras no país. Isso porque as cadeias produtivas das maiores culturas no Estado, principalmente soja e arroz, situadas no entorno das áreas dos assentamentos, avançariam, também, sobre os lotes dos recém titulados. “Não existe legislação que garanta o impedimento da reconcentração de terra. De imediato, após o pagamento, já é possível vendê-la. Eu não tenho nenhuma dúvida que, com a titulação, nossos assentamentos conquistados com grande esforço vão voltar para a mão de meia-dúzia de latifundiários”, garante Álvaro Delatorre, dirigente estadual do MST.
O INCRA, no entanto, nega que isso seja possível. Segundo André Bessow, legalmente há um impeditivo para que os grandes latifundiários não somem às suas terras as áreas dos pequenos agricultores que, outrora, foram assentados da reforma agrária. “Nós temos que focar e entendermos que a parte de tentar evitar isso foi feito: uma legislação que evita a reconcentração de novas áreas. Agora se na prática isso vai acontecer a gente não tem uma gerência, não podemos entrar muito nesse mérito. Mas o INCRA buscou, de forma bem clara, bem objetiva, de colocar na lei evitando que haja reconcentração. Tomara que não haja porque não é essa a intenção”, garante o superintendente gaúcho do órgão.
A legislação a qual Bessow se refere é o decreto 9.311, de 15 de março de 2018, do Governo Federal. A parágrafo único do artigo 35 afirma que, uma vez o lote de terras adquirido através do Título de Domínio, ele não poderá ser incorporado a “outro imóvel rural cuja área final ultrapasse quatro módulos fiscais”. Um módulo fiscal é uma medida de hectares fixada pelo INCRA para cada município e leva em conta fatores como tipo de culturas produzidas e renda obtida. Em Eldorado do Sul, onde está o Assentamento Integração Gaúcha, cada módulo fiscal equivale a 14 hectares. Além disso, o decreto prevê que em dez anos, a partir da obtenção do Título de Domínio, ainda que a área esteja quitada, não é permitido comercializá-la.
Da produtividade aos problemas: como os assentamentos sobrevivem
O Assentamento Integração Gaúcha nasceu em 1999, atendendo às reivindicações dos acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Eram trabalhadores na maioria de origem rural, que buscavam moradia e terra para trabalhar. Hoje, o assentamento tem 47 famílias. Couve, alface, feijão, temperos e diversas outras verduras são cultivados em hortas coletivas, seguindo o conceito de agroecologia nos espaços denominados glebas, ou seja, lotes de terra compartilhados em sociedade pelos cooperados.
No Integração Gaúcha está, também, a sede da COOTAP, a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre, responsável por centralizar a produção dos assentamentos da região e fazer o beneficiamento e industrialização de alguns produtos, como o arroz orgânico, antes de eles chegarem ao mercado. “A COOTAP funciona como um grande chapéu para os agricultores organizados”, afirma Cleusa, pedagoga e pós-graduada em Agricultura Familiar Camponesa e Educação no Campo pela Universidade Federal de Santa Maria. Assentada há 30 anos no Assentamento Padre Josimo, ao lado do Integração gaúcha, ela explica que o MST defende um projeto de valorização do campo através da Reforma Agrária, buscando um novo modelo de distribuição de terras, produção de alimentos sadios e geração de trabalho e renda através de inclusão. Em outras palavras, é o que o MST define como como função social da terra.
A produção e o uso correto dos lotes destinados aos assentados pela reforma agrária contrasta com os problemas encontrados nos assentamentos. No próprio Integração Gaúcha há lotes que deveriam ter assentados em cima produzindo arroz, mas que são arrendados para terceiros. Em outros assentamentos, a cadeia produtiva da soja se organiza no entorno e avança sobre as áreas assentadas. Álvaro Delatorre, do MST, entende que as alternativas, para frear esses avanços, precisam ser práticas. “Temos plena consciência que existe uma parcela significativa das famílias assentadas que estão, de certa forma, ludibriadas com essa ideia de produção de soja como a única possibilidade. Do ponto de vista do posicionamento político, é claro que o MST é contra a monocultura da soja, contra o uso que se faz desse modelo perverso, é contra arrendamento. Sempre deixamos isso muito claro. Só que, na prática, só o ideológico não é o suficiente. Não podemos ser ingênuos. Se eu sou contra, eu preciso dar uma alternativa. E dar uma alternativa não é política, é prática”, comenta Delatorre.
Seis acampamentos do MST dão, atualmente, a dimensão numérica da luta por terra no Rio Grande do Sul. Duas mil famílias vivem acampadas em Eldorado do Sul (no trevo de acesso a Charqueadas), Passo Fundo, Cruz Alta, São Gabriel, Santana do Livramento e Candiota. Os acampamentos, constituídos, basicamente, por barracos de lona preta, são a imagem mais conhecida de uma forma histórica de fazer pressão coletivamente na busca pela terra. Desde 1995, a média anual era de 58,6 mil famílias assentadas por ano no país, segundos dados do INCRA. Com a chegada do PT ao governo, em 2003, os acampamentos, aos poucos, deixaram de fazer parte do visual principalmente das beiras das estradas. A mesa de negociação com o Governo Federal passou a ser habitada, neste período, pelo MST. Além disso, com o crescimento econômico e a geração de empregos em alta, diminuiu a demanda de acampados buscando um lote de terra para plantar. O motivo? Estavam empregados. A situação, hoje, é diferente.
O sonho de todo acampado é se tornar, rapidamente, um assentado. Um desses acampados é Anderson Dutra, uma das lideranças do Acampamento Che Guevara, localizado no entroncamento da BR-290 com a RS-401, no acesso a Charqueadas, a 40 quilômetros de Porto Alegre. A esperança se mantém apesar de, atualmente, criar novos assentamentos ou assentar famílias nos já existentes não seja uma prática do INCRA. “Nós fazemos atividades, lutando e cobrando os governos para que cumpram com certos direitos que nós adquirimos. A nossa perspectiva é sempre de que vai sair assentamento no decorrer daquele ano. E esse ano não é difícil”, avalia Dutra. Mesmo lutando, o descontentamento com o freio na reforma agrária em 2017 fica evidente. “A visão, hoje, das famílias acampadas é muito ruim sobre a nossa política, tendo em vista que não avança o processo há muito tempo. Há vários anos o governo vem assentando cada vez menos famílias no país e, por consequência, no RS também”, lamenta. Há quem desista no meio do caminho e busque outra alternativa.
O acampamento se fixa em uma área que não necessariamente se pretende que seja desapropriada ou comprada para a destinação a novos assentados. As famílias se somam em acampamentos como forma de organização e podem ser assentadas, posteriormente, em áreas próximas ou não dali. Se os acampamentos têm geralmente a mesma cara — com barracos de lona preta espalhados às margens de rodovias — , o perfil dos assentamentos varia muito, principalmente em função da cultura agrícola produzida. No Integração Gaúcha, que fica a cerca de três quilômetros do Centro de Eldorado do Sul, cada lote tem cerca de 19,8 hectares. A sede oficial é formada por um galpão que serve de refeitório e cozinha, um segundo para o armazenamento de pequenos equipamentos agrícolas e um terceiro, maior e mais novo, que abriga a COOTAP.
O Assentamento Integração Gaúcha se organiza como uma agrovila, uma espécie de moradia rural não muito distante de um centro urbano. As plantações orgânicas são cultivadas por famílias que executam todas as etapas da comercialização desses alimentos. Preparam a terra, plantam, colhem e distribuem em feiras e estabelecimentos na Região Metropolitana. Em 1987, quando parte das famílias foi assentada na região, o Movimento Sem Terra não encerrava uma luta, segundo a assentada Cleusa. Com a definição do local e a oficialização do assentamento, iniciou-se uma articulação política que transpassa a propriedade rural. A primeira reivindicação dos assentados do Integração Gaúcha foi a implementação de instituições de ensino. Após oito anos de discussão junto a órgãos públicos, as mulheres do MST conquistaram uma creche e uma escola de educação infantil. “Ter um lugar para deixar as crianças e ir para lavoura tranquila”, justifica Cleusa. Para a assentada, essa também foi uma conquista em igualdade de gênero, pois as mulheres culturalmente assumem a responsabilidade de cuidar das crianças.
Um problema apenas rural?
Às vésperas de uma eleição presidencial, as incertezas sobre os rumos da reforma agrária no país aumentam. Os trabalhos de base do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra — um dos 130 movimentos sociais de luta pela terra organizados no Brasil e o mais atuante no RS — têm conquistado mais adeptos em virtude da crise econômica e do alto número de desempregados. A luta pela terra é, para muitos, um alento diante da falta de uma ocupação, o que ajuda a formar e ampliar os acampamentos. É possível afirmar que taxas mais altas de desemprego fortalecem a luta pela terra e, por consequência, seus movimentos sociais.
Com a ausência da conquista de novas terras, Álvaro Delatorre afirma que as já existentes se constituem como força política na luta do MST. “O assentamento passa a ter uma função estratégica para manter o debate em torno da questão fundiária e da reforma agrária”. No entanto, há barreiras para a consolidação desse objetivo. “É preciso construir um modelo que vá contra a hegemonia do agronegócio. Consolidar nossa matriz, que se contrapõe à lógica de mercado, onde produzimos alimentos limpos, preservando e recuperando recursos naturais não é uma tarefa fácil. Já para a indústria da soja, principalmente, existe um sistema produtivo altamente qualificado. Basicamente é só plantar e vender”, afirma.
O diálogo com o MST é tranquilo no Estado, afirma o INCRA. Mas o superintendente André Bessow deixa clara a divergência entre o órgão e o movimento quando a pauta é a titulação. “Constantemente a gente se reúne. Eles trazem as pautas deles e nós tentamos atender diante do cenário político e econômico. Em relação à titulação, a gente diverge. Eles entendem que a titulação não deveria ser aplicada e nós entendemos que é um direito da família assentada. Não tem muito o porquê nós discutirmos quem está certo e errado. Nosso papel é trabalhar e garantir um direito que existe na própria Constituição Federal, que é a titulação. É inegável que é uma diretriz, sim, dessa direção nacional. Não se trata do presidente da república e sim presidente do INCRA. Foi uma política que eles colocaram também como prioritária, mas não única”, destaca.
A professora Rosa de Medeiros, da UFRGS, entende que uma verdadeira reforma agrária no país deveria levar em consideração, de maneira mais presente, as especificidades de cada região considerando questões sociais, econômicas e territoriais. Ela não vê as políticas atuais constituírem uma verdadeira reforma agrária, mas, sim, uma política de assentamentos. “A pressão esmoreceu. Mesmo com esses acampamentos, a gente não vê aqui no Rio Grande do Sul alguma coisa que realmente estimule um processo no sentido de que aconteça uma reforma agrária”, lamenta a pesquisadora que tem diversas pesquisas, artigos e livros publicados sobre a questão agrária brasileira.
A dificuldade de se pautar as questões agrárias na agenda de quem vive nas cidades é um dos motivos, elencados pelo MST, que impossibilita um debate mais amplo sobre o tema. O movimento defende, há cerca de dez anos, uma Reforma Agrária Popular num modelo de enfrentamento ao agronegócio. Um dos motores desta reforma é a defesa da produção agroecológica, como a das hortas do Assentamento Integração Gaúcha. Até dezembro, com o atual comando do INCRA, a prioridade deverá continuar sendo a da concessão de Títulos de Domínio. Em janeiro de 2019, a depender do governo eleito, esta política pode ter freio ou ser acelerada.
(*) Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Investigativo da Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer. A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos.