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TESE DE DOUTORADO. Grafias Urbanas. Cleber Augusto Barreto Correa

A partir da ideia de uma pedagogia da cidade, o primeiro aspecto que se relaciona com as grafias urbanas refere-se aos deslocamentos dos corpos pelos espacos. As grafias, em especial no caso das pichacoes e dos graffitis, proporcionam contatos com a cidade de regioes e perspectivas inusitadas. As circulacoes geradas por essas praticas levam a um conhecimento empirico, sem a mediacao de aparatos das tecnologias comunicacionais (celulares, televisores, impressos). O exercicio de sair para pichar ou grafitar provoca derivas em busca de muros e situacoes propicias para a acão.

Há tambem um modo de usar os corpos que rompe com os condicionamentos derivados da logica utilitarista que se instalou na vida cotidiana. As grafias urbanas, e nesse quesito inclui-se a pintura de murais de maior escala, levam a atividade fisica ao limite – háuma intensa exigencia de consciencia corporal. Para a realizacao das pinturas e escritas os corpos sao treinados, tensionados e precisam executar seus desafios em tempo habil.

Nas grafias urbanas - pichacao, graffitis e pinturas de murais – corpo e cidade sao temas indissociaveis. Tal relacao pode acontecer por diferentes perspectivas, com enfases variadas para cada uma das praticas. No caso da pichacao, e importante lembrar que o seu princípio de acao esta nas performances dos corpos deslocando pelos espaco urbanos. Os nomes grafados atestam presencas corporais. Sao memorias de gestos derivados de outras peripecias corporais (escaladas, manejos de rolos e pincéis com cabos extensores, formações em piramide humana ou jequeres, pinturas feitas por corpos suspensos de cabeça para baixo). Nas pichacoes, os corpos sao extremados – pela habilidade, pela forca, pelo contorcionismo e pelo risco físico (eventualmente fatal). Como na antiga modalidade de pichacao em que se escrevia o nome do pichador seguido pela frase "esteve aqui", o que se manifesta nas pichacoes atuais ainda e o testemunho de alguem que riscou o seu nome. No entanto, nao émais preciso escrever que se esteve la, a assinatura cumpre essa funcao sem que a inscricao se torne redundante. A escrita éatestado de presenca.

Nos graffitis a operação é similar, no entanto, ela ocorre pela escrita mais colorida e elaborada ou pelo desenho que se torna a marca registrada do autor. Quando se trata das grafitagens, a exigência do corpo é de outro tipo. Existe uma equação, entre finalizar a pintura e raramente se ter o tempo tempo suficiente, que exige destreza e agilidade corporal – isso ocorre tanto pela imprevisibilidade no trato com as rotinas urbanas como pela falta de autorização formal para a prática (salvas as exceções). Grafiteiros costumam repetir os seus gestos, em rascunhos ou em uma rotina de pinturas em paredes e outros suportes, até que seus movimentos se tornem mais ágeis e os traços se tornem precisos. Ocorre também, no graffiti, o acesso a cantos pouco convencionais da cidade: pilastras de viaduto, saídas de túneis, linhas de trem, vias expressas pouco receptivas para pedestres – embora os topos de prédio não sejam tão explorados por essa modalidade. O contato e o intercâmbio com pessoas em situação de rua, trecheiros e habitantes de regiões pouco contempladas pelos serviços públicos derivam desses percursos improváveis. Há um aprendizado com e sobre essas realidades.

Nos murais o destaque recai sobre a escala - geralmente os corpos – do autor e do público – se tornam diminutos diante dessas pinturas. Os muralistas contemporâneos são levados ao esgotamento físico após horas seguidas de trabalho em empenas cegas ou em paredes horizontais de maior escala. Há claramente um embate do corpo tentando vencer o suporte (metros de concreto vertical), em articulação com os equipamentos de apoio (andaimes, balancinhos, plataformas e lifts). Ao pintar o mural tem-se uma visão panorâmica da cidade – ocorre a estranha sensação de se estar com o corpo, aparentemente solto, na parte externa de um edifício. Para o público as pinturas murais contrastam com o cinza das construções e com o tipo de conhecimento produzido pelas imagens publicitárias e pelas frases e sinais imperativos do tráfego urbano. Talvez seja possível, por meio das pinturas, lembrar que os prédios, essas extensões verticalmente construídas, precisam ser pensados como elementos constitutivos, e incontornáveis, da vida urbana. Talvez possamos refletir conjuntamente sobre os modelos imagéticos e os comandos diários que influenciam o nosso pensar.

Nos três casos – pichação, graffiti e mural – existe um inconformismo contra a normatividade no espaço urbano. É comum nos praticantes dessas grafias um sentimento relacionado ao tédio decorrente das imposições da vida cotidiana. Elas incitam outras possibilidades para os usos dos espaços públicos e, de certa maneira, reivindicam formas alternativas para se pensar a cidade. O embate por meio de palavras e desenhos sobre os muros, em muitos casos, busca evidenciar outros atritos presentes no cotidiano urbano: verticalização versus escala humana, automóveis predominado em relação aos pedestres, a heterogeneidade dos tempos humanos versus as demandas do mercado, periferias apartadas socialmente dos centros, a lógica do capital sufocando outras possíveis subjetivações, o utilitarismo contra a imaginação. Hà também uma reivindicação de acesso à produção artística de forma mais democrática e de resposta à restrição aos meios de comunicação tradicionais.

Os sujeitos envolvidos nas grafias buscam vencer os condicionamentos impostos pelas rotinas urbanas ao assinarem seus nomes ou expressarem por desenhos. Geralmente tratam-se de pessoas que amortecem as demandas diárias com seus corpos em rotinas árduas e precárias, são eles: moradores de bairros periféricos, usuários de transporte coletivo, motoboys, trabalhadores do comércio ou da indústria, jovens que estão sempre nos rankings da violência urbana e dos índices de mortalidade precoce. São corpos que sentem cotidianamente a brutalidade urbana e que devolvem de formas variadas: pela resistência, pelo confronto e pela reafirmação do próprio nome. Ou pela construção de imagens que veiculem empatia, ludicidade e um tanto de humanidade que lhes parece esvair dos ambientes urbanos.

Pichações, graffitis e murais são respostas diferentes para estímulos semelhantes. No caso mais específico das pichações, elas nos indicam que nem tudo vai bem nas cidades. São índices que apontam para a desigualdade social, para a escassez de investimento nas juventudes periféricas e dizem de uma rotina que maltrata e diminui as perspectivas de vida. Mesmo que nem todos consigam fazer uma leitura clara das pichações como fenômeno coletivo, elas geram o incômodo e ajudam a acentuar as

ruínas sociais. Enquanto algumas dessas iniciativas escancaram nomes nas superfícies das cidades de forma perigosamente transgressora, outras buscam lidar com as contradições urbanas por meio da empatia e de um jogo que possui facilitadores para o engajamento público, como figuras de mais fácil assimilação e cores. Conclui-se que, pichações, graffitis e pinturas murais partem de questões similares e acabam por propor diferentes formas de se “jogar” com as rotinas urbanas. Em todos os casos essas coletividades favorecem a sociabilidade e o intenso intercâmbio entre seus praticantes.

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