TESE DE DOUTORADO. Jardins Possíveis. Luciana Souza Bragança
Começo com o conceito de possível. Possível (Lévy, 1996, p.16) seria algo que já estaria
constituído, estando somente em estado latente, pronto a se transformar no real. Levy,
baseado em Deleuse, considera algo previsível e estático, a passagem do possível para o real.
Entretanto, mesmo dentro da previsibilidade, o possível abarca elementos não hegemônicos
que mesmo com possibilidade de passagem para o real tem dificuldade para fazê-lo por
condições do contexto da cidade.
Para a pesquisa, associa-se o possível à característica de geratividade e, portanto, de
criatividade já latente no território. O possível é dotado de qualidades. Tais qualidades são
potências abstratas que podem ou não se transformar em real, mas tem grandes chances de
Fazê-lo. Jardins possíveis são híbridos de natureza /cultura presentes no território com
potência para recriá-lo ao tornarem-se real.
Para Gonçalves (1998), o conceito de Natureza não é natural, e sim uma construção social, pois
toda sociedade, toda cultura cria e institui uma determinada ideia de Natureza que se define
como aquilo que se opõe à cultura. Esta seria então, em vários casos, algo superior que
domina a natureza. Tal domínio tem origem com a agricultura. O processo de sedimentação da
ideia de uma natureza objetiva e exterior ao humano e a ideia de homem não-natural e fora da
natureza ocorreu e se aprofundou principalmente com a industrialização. Esse dualismo se
mostra primordial para afirmar a preponderância dos humanos sobre os não-humanos, estes
englobados pelo conceito moderno de natureza, e para a exploração desses bens.
Segundo o autor (GONÇALVES 1998) o movimento ecológico pode ser entendido como
produto da relação natureza e sociedade, fundamentado como um movimento de caráter
político-cultural, onde cada povo constrói seu conceito de natureza, estabelecendo-o ao
mesmo tempo em que institui suas relações sociais. “Estávamos acostumados à ideia de que
nossa fisiologia, nossa anatomia descende da dos primatas. Deveríamos habituar-nos à ideia
de que o mesmo acontece com o nosso corpo social.” (GONÇALVES 1998 p.82) Mas no
ocidente coloca-se a cultura contra a natureza, o que deveria ser o contrário, pois ela é um dos
pilares pelo qual os homens criam suas relações sociais, sua produção material, enfim sua
cultura. Cultura é, portanto parte da natureza: a forma como humanos coexistem com os não-
humanos. Jardins são pois elementos possíveis para exemplificar esse conceito de natureza
abrangente presentes no território.
Numa concepção clássica de jardim ele é considerado um microcosmo do infinito, a
representação de um mundo, de uma cosmologia. Historicamente podemos destacar algumas
dessas representações: os jardins como o microcosmo religioso, o jardim como a
representação do poder e mais recentemente o jardim particular como uma projeção
individual de ascensão social. A que cosmovisões eles nos remetem hoje?
Para o paisagista Frances Gilles Clément, o conceito de Jardim é uma área, pública ou privada,
onde a arte da jardinagem - para o sustento, prazer, parques ou outros programas de
acompanhamento, urbano ou rural - é praticada em harmonia com a natureza e o homem,
livre da dominação de mercado. Eles são lugares de resistência. Diversidade, tanto biológica e
cultural, bem como a preservação da água, do solo e do ar é incentivada para o bem comum.
Clément, ao construir o conceito de “Jardins planetários”, recorre à utopia buscando
representar uma história da coexistência que por vezes é amigável ou hostil entre natureza e
cultura. Tal construção tem origem nos primórdios dessa relação e passa por todos os
continentes construindo uma história de pessoas e plantas pelo planeta. Os limites do jardim
planetário são os biomas numa ideia de um continente único. Os residentes deste continente
único seriam cidadãos-jardineiros, agindo com as melhores intenções em relação ao planeta e
participando dos paradigmas do ecologismo que é o único projeto verdadeiro para o século
XXI.
O jardim, segundo ele, superam as circunstâncias e a época. São ligados às constantes
universais da vida e seus materiais estão ligados à função biológica participando de um
movimento de energias. Dessa relação entre humanos e não humanos surge o conceito de
“jardim em movimento” no qual as pessoas são responsáveis por uma pequena ajuda à
natureza. O seu jardim é o resultado do comportamento das espécies plantadas, com seus
florescimentos, frutificações, brotações ou mortes sucessivas seguindo os processos naturais
sem predeterminá-los ou privá-los da sua natureza dinâmica.
O paisagista brasileiro Burle Marx é reconhecido por sua tendência de agrupar a flora em
imensos borrões monocromáticos, apresentando plantas como o pigmento de uma pintura de
grande porte. Se numa aproximação inicial os jardins do paisagista são caracterizados pelo
controle da natureza diferentemente de Clément, seu profundo estudo sobre os contextos
naturais brasileiros e as incongruências entre suas aquarelas e seus jardins resultantes
apontam em outra direção. O trabalho de Burle Marx sempre foi pautado no entendimento e
respeito com a natureza incorporando a flora brasileira e, consequentemente, a fauna em seus
jardins. Burle Marx dizia que apenas iniciava o trabalho dos jardins, pois o tempo e o corpo
completariam a ideia.
De Burle Marx a Gilles Clément, os jardins são mutáveis e incorporam na natureza, segundo
suas características, não só humanas ou só não-humanos, mas um híbrido das duas
possibilidades. Jardins são microecologias sujeitas ao tempo, um híbrido natural/cultural
presente no território.
O conceito de heterotopia desenvolvido por Foucault (1984) também aponta para os jardins
como elementos de conexão na natureza de humanos e não-humanos. As heterotopias “são
espécies de utopias realizadas nas quais todos os sítios reais dessa dada cultura podem ser
encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos”.
(FOUCAULT, 1984, p. 4) A heterotopia, lugar outro, contrapõe-se assim ao lugar-comum. É,
portanto, o lugar da diferenciação, do que não se submete à identidade niveladora: o
lugar do outro no qual o comum se reconhece. É o estranho onde é possível reconhecer o
familiar.
Os grupos sociais constroem uma identidade entre seus membros bem como sua cidade e seu
espaço. Numa situação onde os espaços são criados por grupos hegemônicos, a cidade tende a
se tornar o mesmo espaço. Todavia, cria-se também um lugar de diferenciação, o que quer
dizer que a cidade não é feita apenas de lugares dominantes, mas também de lugares outros
e dos outros. A cidade é, portanto, lugar de humanos e espaços hegemônicos bem como de
híbridos naturais/culturais criados pela diferenciação.
Para Foucault (1984), os jardins são heterotopias capazes de justapor em um único lugar real
vários espaços que, por suas especificidades, seriam incompatíveis. Os jardins seriam, para o
autor, o exemplo mais antigo de heterotopia e são esses outros espaços diferentes, que
funcionam como a contestação dos espaços onde vivemos. A cidade representaria a saída do
homem da natureza, e o jardim seria o espaço outro da natureza e da pessoa-natureza na
cidade.
Segundo Mongin (2013), no contexto da cidade fluxo, o mundo não é dado antecipadamente e
é preciso sim reinventá-lo. Não há mais totalidades a serem representadas. Assim, o jardim
não seria só a expressão de um mundo preexistente, mas a manifestação de um mundo
singular onde não se formam mais mundos. Seria uma raridade num planeta urbano que
falsifica as paisagens, capaz de se abrir como possibilidade. O jardim surge então como uma
alternativa de recriação do mundo e sua invenção favorece outra relação. Partindo para a
análise de Haesbaert (2009) sobre as novas territorialidades, os jardins podem ser um dos
elementos capazes de estabelecer uma relação territorial da natureza que abarca humanos e
não humanos e, principalmente, um meio experimentado por aqueles que o constroem e
compartilham.
Os jardins, realizam no presente o que se quer ter no futuro. Embora não sejam
confrontacionais, procuram se desconectar dos fluxos de mercado através da reciprocidade e
construir uma relação na natureza que abarca humanos e não-humanos para além das trocas
capitalistas. Mesmo que tenham um alcance limitado, os jardins podem ser exemplarmente
pedagógicos. Configuram-se como uma resistência espacial no território.
No campo, várias entrevistas exemplificam essa concepção de natureza que inclui humanos e
não-humanos que se espacializa nos Jardins.
Para Sra A. professora aposentada, “as plantas tem poder espiritual, nós após morrermos
nascemos plantas. Sempre falo para meus alunos fazerem o dever de casa debaixo de uma
arvore, pois a conexão ajuda.” Os jardins são para ela uma representação sagrada de
religiosidade e continuidade da vida. “minha nora me deu essa bananeira e dois netinho. Deus
levou ela, mas ela tá ali na bananeira.” Esse pertencimento se apresenta também nas longas
conversas que a Sra. A mantem com as plantas: “são minhas amigas, companheiras. Todo dia a
gente conversa e troca umas ideias.” Os jardins são também para a Sra A uma forma de
estabelecer relações com o mundo e com seus vizinhos. “ Eu distribuo mudas, fruta e verdura.
Quanto mais eu doo, a planta fica mais feliz. É assim né, se a gente dá amor, recebe de volta”.
Para o Sr G, monitor de oficina infantil, os jardins são uma forma de educação e de construir
relações na escola. “Os meninos estão tomando uma autoestima com o meio ambiente porque
eu explico eles, sabe? Eu falo, se não ces não vão saber ensinar seus netos que que é planta.” É
também para ele um elemento para reconhecer outros tempos que não os da produção de
bens de consumo. “ no tempo de frio eu rego três vezes por semana. No calor é todo dia. Eu
molho por gravidade ( de cima pra baixo molhando as folhas) senão empoça. E as fruteza
quando dá eu pego as bacia e levo pra cantina pra faze suco pros menino.” O jardim da escola
é também o lugar de convivência com outros animais. “ Eu compro do meu bolso um quilo de
canjiquinha. Os minino e eu ficamos observando os passarinho se fartá. Outro dia um macaco
roubou meu boné! Mas macaco é assim mesmo, cé já viu né?”
O Sr T é uma pessoa de referência no bairro. Ele organiza um jardim em área remanescente
em frente a sua casa. A memória do rio onde se brincava, pescava e nadava é compartilhada
por ele "voltavam os menino tudo marrom de lama, e no dia seguinte tava lá, tudo dentro do
rio de novo". O jardim é também forma de fazer política para T. O caso mais emblemático foi o
dia em que disseram que iriam cortar os abacateiros próximos a sua casa. "Disseram que iam
cortar e arrancar tudo fora";. Passado algum tempo, o vizinho, a quem chamam de "Capitão",
alertou que iriam, no dia seguinte cortar as árvores. "Fizemos uma arapuca"; Haviam cortado
umas mangueiras anteriormente e os trocos ainda não tinham sido recolhidos. Sr.T e alguns
amigos posicionaram os troncos no meio da via de forma a bloquear a passagem dos
caminhões que viriam fazer a supressão. Estes estacionaram, e os técnicos então caminharam
com uma motosserra, dispostos a fazer o serviço. Chegando aos abacateiros os moradores
protestaram e na insuficiência dos pedidos pela permanência dos abacateiros, à época
carregados de frutos, a estratégia foi requisitar os pedidos de licença. "Você tem licença para
realizar essa poda?";, retornaram aos carros e voltaram com a licença. "E a licença da
motosserra, vocês tem?"; Os responsáveis voltaram aos carros, fizeram ligações e de fato,
encontraram a licença: estava em Sete Lagoas, município da região metropolitana de Belo
Horizonte, e a essa altura, devido aos atrasos da barricada e da negociação, tornava-se inviável
o deslocamento para a obtenção da licença e a execução das operações de corte. Finaliza
sorridente: "Taí ó, tudo de pé"; e conta que quando é época de abacate distribui aos vizinhos,
do tanto de fruta que dá! .
O conceito de Jardim já foi inicialmente definido acima, mas será aqui resumido. Comumente
conceitua-se jardim por uma composição paisagística de plantas e flores de um projeto
arquitetônico ou urbanístico, destinada ao lazer ou ao estudo. No espaço das grandes cidades,
pautada pela predação dos elementos não-humanos da natureza, as relações orgânicas de
autorregulação do ambiente natural se enfraquecem e o ser humano assume, portanto, a
função de catalisador da existência de jardins. O jardim urbano surge como ferramenta de
reaproximação entre humanos e não-humanos na natureza. Surge também como potência de
reconhecimento dos humanos como elementos naturais. São elementos de conexão espiritual,
de trocas entre humanos e humanos e entre humanos e não-humanos, de reconhecimento
dos tempos da natureza que existem além dos tempos da produção, de aprendizado e de fazer
política. Associando nos jardins à resiliência das plantas e animais ao reconhecimento do
homem como ser natural, esses agentes legitimam outra visão de mundo e novas perspectivas
de apropriação na cidade.